“Porque a ingratidão é o sentimento que o ser humano menos reconhece em si...”
Agora, nessa cela infecta, execrado pela opinião pública por matar o presidente mais bem avaliado na história da república, venho declarar que a culpada é a imprensa, na verdade não sei se a imprensa é culpada, mas se personagens mui mais poderosos a acusam, por que eu abriria mão desse álibi... Eu que estou, aqui, tão oprimido, sem esperança e transformado em inimigo público número um, não abrirei mão dessa prerrogativa, sempre haverá quem acredita neste engodo. Então, porque matei o presidente, narrarei agora: Em plena ditadura, estávamos, eu e meu aprendiz, ralando o couro para atingir metas de produção numa multinacional montadora de veículos. Peço licença para uma digressão, o que seria ditadura... o que seria democracia... Tenho certeza que passamos de uma ditadura dura para uma ditadura dura representativa, onde a legitimamos com nossos votos. Luisinho, meu aprendiz, era um menino de voz mansa, físico frágil, e, sobretudo o que mais o caracterizava era o seu olhar doce, lembro-me que sempre brincava: Luisinho, por acaso você pinga colírio de glicose nos olhos para os ter assim tão dóceis...
Com o tempo, acho, que Luisinho adotou-me como pai, pai que na verdade ele não teve, de tão ausente e alcoólatra. Seu Alves, me dizia, preciso livrar-me desse trabalho estafante e monótono, preciso lutar contra a ditadura. Afinal, ser peão basta um dia, pois sê-lo anos a fio é uma tortura! E diuturnamente me enchia o saco: Seu Alves me ajuda, me ajuda, me ajuda... Num dia, no início da jornada lhe falei: Luisinho feche os olhos e ore comigo: "Que não doa, que nem dedo há, que não foi decepado e sim que nunca nasceu... Que esse dedo faltou de nascença... " E enquanto orava coloquei sua mão sobre a bancada e com um golpe certeiro decepei- lhe o dedo. Luisinho chorou e, por amor a verdade, até xingou...
Ai, Luisinho aposentou, içou velas e singrou os mares da política com desenvoltura e se tornou uma liderança nacional. Mas nunca me perdoou pelo o ocorrido, de ter decepado seu dedo. Pensei que por ser, ainda, muito recente, mas que mais tarde ele me perdoaria pelo mal necessário que eu executei, aliás, com mestria. Ma não! Foi eleito presidente, ai falei agora vai me chamar, me agradecer e me dar um cargo compatível com o sacrifício que fiz, creiam-me, decepar o dedo de Luisinho custou-me muita dor... Mas nada, não me chamou, não me escreveu, não mandou recados, ignorou-me! Mas pensei, mesmo no anonimato faço parte desta história, pois se não fosse minha coragem e sangue frio, Luisinho estaria, até hoje, a mourejar no chão da fábrica.
Mas passaram se os anos e Luisinho não fez nada para o trabalhador de carteira assinada que, nos anos difíceis, quando todos lhe viravam as costas estiveram sempre presentes e muitos fiéis. Manteve o fator-previdencário, o congelamento da tabela do imposto de renda, a demissão imotivada, etc. Mas pensei, outros piores houve nesta república insana e insensível, deixa estar, dor de barriga não dá uma vez só. (peão sempre fala isso ao perceber que foi enganado).
Mais ai, de tão seguro de si, desandou a cuspir na cara de todos. Disse que os prisioneiros políticos cubanos eram presos comuns, beijou e chamou de irmão Ahmadninejad, açougueiro e ditador do Irã. Estendeu o tapete vermelho a todos os ditadores, que em pleno século XXI, envergonham a civilização e que se não forem banidas da terra a civilização humana passará a chamar-se civilização sacana. Mas a isso ainda relevei. Mas o dia que Luisinho vestiu o uniforme Corinthians, sentou nas arquibancadas e ligou seu rádio de pilhas, não agüentei, foi demais, saquei do bolso uma foto do Médici, que sempre carrego no bolso para nunca esquecer que no Brasil houve uma ditadura e, olhei pra foto de Médici e para o Luisinho e, para meu imenso espanto e tristeza, não havia diferença, eram irmãos siameses. Ai, minha mão alienista empunhou a arma do crime, um revólver vinte e dois todo enferrujado, e ele, o revólver vinte e dois, e eu explodimos em um estampido xoxo que não traduz a descarga de ódio, dor e decepção que conteve aquele ato. E antes que mãos fortes e carregadas de ódios me imobilizassem ainda ouvi a ultima frase de Luisinho: Compadre devolva meu dedo...
Ai, acordei com uma dor de cabeça terrível....